Por Flávia Longo
Este
é o segundo de uma série de textos sobre algumas das relações que se
estabelecem entre dinâmicas de população, estudos demográficos e
questões educacionais.
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No
final de 2015 o governo do Estado de São Paulo tornou pública uma
polêmica proposta de reorganização escolar, que previa a mudança de
oferta de níveis de ensino em determinadas unidades e o fechamento de
outras. Foram dois os argumentos que a embasaram: o primeiro, de que
escolas organizadas em ciclos facilitariam a gestão e melhorariam o
aproveitamento escolar dos alunos. O segundo, de que a redução da
demanda por vagas no Ensino Básico ocorreria em função de mudanças
demográficas.
Diversas
diretorias de ensino replicaram uma nota semelhante: “Nem todas as
unidades passarão pelo processo e escolas com mais de um ciclo ainda
funcionarão, devido às diferenças demográficas e às necessidades por
escolas para diversas faixas etárias em algumas regiões” (Disponível aqui).
A
proposta de reorganizar a educação estadual em São Paulo não é nova. Um
processo a ser recordado foi o da municipalização do ensino ocorrida ao
longo da década de 1990, que transferiu a responsabilidade dos ensinos
Infantil e Fundamental para as gestões municipais. Em 1995, no governo
de Mário Covas, o decreto nº 40.473, de 21 de novembro daquele ano
instituiu o “Programa de Reorganização das Escolas da Rede Pública
Estadual”. Nele estava previsto que o critério de agrupamento em um
único prédio de múltiplas etapas de ensino constituía-se, além de um
grave problema pedagógico, sérias distorções das demandas escolares. A
mudança que se seguiu foi a organização de escolas por ciclos: até a 4ª
série; de 5ª a 8ª séries e segundo grau. Em 1996, a Secretaria da
Educação do Estado de São Paulo deu início à reorganização de suas
unidades estabelecendo parcerias e convênios com os municípios e
fechando diversas escolas estaduais.
A
redistribuição dos alunos na rede municipal, antes atendidos pela rede
estadual, desonerou o Estado de sua obrigação para com esses estudantes.
A conta feita, pela então secretária de Educação do Estado, Maria
Helena Guimarães de Castro, é simples: "Em 1995, São Paulo tinha quase 7 milhões de alunos e 5,4 mil escolas. Hoje tem menos de 4 milhões de alunos e 5,4 mil escolas".
Além
da diminuição da média de alunos por escola, a reorganização proposta
em 2015 difere daquela de 1990 devido ao argumento demográfico empregado
em sua justificativa: a redução da fecundidade (número de filhos por
mulher) também seria o motivo de uma menor demanda por vagas escolares.
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Curiosidade:
Esta
não foi a primeira vez que o volume da população foi utilizado para
justificar a abertura ou fechamento de vagas escolares. Três anos após a
Constituição Política do Império do Brasil, em 1827, foi decretada a
lei 15 de outubro, cujo artigo 2º versava: “Os Presidentes das
províncias, em Conselho e com audiência das respectivas Câmaras,
enquanto não estiverem em exercício os Conselhos Gerais, marcarão o
número e localidades das escolas, podendo extinguir as que existem em
lugares pouco populosos e remover os Professores delas para as que se
criarem, onde mais aproveitem, dando conta a Assembléia Geral para final
resolução” (BRASIL, 1827).
E o fechamento de escolas no Brasil não é um fenômeno novo, e ocorre
sobremaneira nas áreas rurais do país, desde a década de 1960 (FERREIRA; BRANDÃO, 2012).
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O
argumento demográfico da queda da fecundidade não é um fenômeno
observado em curto prazo. As coortes de estudantes (conjunto de pessoas
que partilham um mesmo evento em um dado momento, no caso, que entram
para o sistema escolar em determinado ano) são reflexos da fecundidade
do passado: para pensarmos no primeiro ano do Ensino Fundamental, são
crianças nascidas há 6/7 anos. Ou seja, as demandas atuais por vagas
dependem desta fecundidade do passado e das taxas de sobrevivência
infantil. Mas, a demanda também depende de uma população já existente,
muitas vezes em idades mais avançadas, e que no entanto não tiveram
acesso à educação na idade esperada: são jovens e adultos com
Fundamental e Médio incompletos – e que estão em condições de voltar a
compor a população de estudantes.
Quando
observamos a pirâmide etária da população de São Paulo no período
2001-2014, notamos a tendência de estreitamento de sua base e do
alargamento do topo. Este fenômeno corresponde ao modelo muito utilizado
pelos demógrafos: o da transição demográfica (este é assunto para um
próximo texto!). Do lado esquerdo está representada a população
masculina, do direito, a feminina.
O
estreitamento da base da pirâmide indica que está em curso uma redução
do número de nascimentos ano a ano. O alargamento do topo, por sua vez,
nos mostra que a maior média de expectativa de vida começa a aparecer,
sobretudo na população de mulheres. As pirâmides poderiam sustentar o
argumento demográfico de fechamento escolar somente a partir de 20 anos,
que é quando os estudantes que hoje estão no sistema teriam tido
suficiente para se formar (pensando aqui em mundo ideal onde todas as
crianças, adolescentes e jovens tem direito à educação); e quando começa
a reduzir efetivamente a demanda, devido à consistente queda da
fecundidade.
Um
perigo em se olhar estritamente o volume da população, é que perdemos
uma série de características. Por exemplo, como estão distribuídos esses
estudantes? Eles se concentram em que cidades ou em que regiões? Será
que todos estão conseguindo cumprir em fase as etapas escolares? (também
já sabemos que não…)
Com essas perguntas vemos que a abordagem demográfica da redução da fecundidade é apenas uma
das possibilidades que a Demografia tem a oferecer nessa situação. Em
minha pesquisa de doutorado, ainda em andamento, procuro explorar essas
outras possibilidades. Uma das minhas preocupações é com a apropriação
restrita do que a Demografia, enquanto disciplina, tem a oferecer para a
gestão pública – assunto da nossa próxima conversa. Por sorte, outros
pesquisadores também estão atentos à reestruturação escolar e às
questões demográficas envolvidas:
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Para saber mais:
Com foco na distribuição espacial, temos o trabalho do professor Eduardo Girotto e demais autores: A geografia da reorganização escolar: uma análise espacial a partir da cidade de São Paulo.
Uma
profunda discussão foi apresentada por pesquisadores da REDE desde o
início da proposta de reorganização. Uma publicação concisa deste
esforço foi publicada na Educação e Sociedade no final de 2016.
E também no final do ano passado, em trabalho conjunto com minha orientadora, professora Joice Melo Vieira, apresentamos um texto cruzando informações sobre as áreas de fechamento de escolas e índices de envelhecimento.
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Adendo:
A reestruturação foi anunciada em setembro daquele ano, mas as reações
estudantis se mantiveram até o final do ano letivo. O caso ganhou
destaque pela magnitude da mudança proposta em uma das cidades mais
urbanizadas e populosas do mundo e pela mobilização da opinião pública
acerca da luta dos estudantes. Apesar da reorganização ter sido
suspensa, no início de 2016, 165 escolas (53 estavam na lista de
fechamento/reorganização) deixaram de abrir matrículas para turmas de
ingresso, isto é, nos primeiro e quinto anos do Ensino Fundamental e no
primeiro ano do Ensino Médio. Este é um indicativo de que em três,
quatro ou cinco anos um ciclo deixará de existir, caracterizando desse
modo uma reestruturação velada.
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A
autora agradece a ajuda de Thiago Dias dos Santos com a elaboração do
gif das pirâmides. As pirâmides foram construídas com base nos dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD, para o período
2001-2014. Para o ano de 2010 foi utilizado o Censo Demográfico. Tanto a
PNAD quanto o Censo são elaborados pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Para o período anterior, ver o trabalho
de Felícia Madeira e Alícia Bercovich.
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